![]() Lourenço da Guia Ferreira Mendes, homenageado da semana – Foto: Wilson Kishi
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Antonio Costa, EXCLUSIVO ao Zakinews
Mais de seis décadas ele tem a Viola de Cocho como sua companheira de animação nas festanças e Rezas de Santo deste lado do Pantanal Mato-grossense. Seu Lourenço, abraçou a viola e não mais largou, desde quando era rapaz e vivia na localidade do Taquaral (24 km do centro de Cáceres).
A identificação com o instrumento que tem lugar de honra e respeito na historicidade estadual, haja vista que se tornou Patrimônio Nacional, registrada no livro dos saberes do Patrimônio Imaterial Brasileiro em dezembro de 2004, é muito afinada com este homem de fala mansa, sábio, amigo e cordial.
![]() Seo Lourenço: A vida dedicada ao Cururu e Siriri – Foto: Wilson Kishi
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LOURENÇO DA GUIA FERREIRA MENDES
Natural de Cáceres-MT
Data de Nascimento: 10/08/1938
Idade: 83 anos
Esposa: Lídia Micaela da Silva Mendes
Data de Casamento: 29/12/1962
Filhos: Catarina, Eva, Adão, Francisco, Gonçalina, José, Ana, Conceição, Luciano. (Todos vivos)
![]() Festa de São Sebastião, em 20 de janeiro de 1962, organizada pelo sr Luiz Ferreira, do Sítio Chapadinha. Na véspera, Lourenço conheceu a jovem Lídia Micaela (dançando ao centro da foto), então com 16 anos. Naquele mesmo ano, os dois uniram-se em matrimônio no dia 29 de dezembro. – Foto: álbum de família
![]() Hoje, o casal: Lourenço com 83 anos e Lídia com 78 anos – Foto: álbum de família |
Nasceu e cresceu em meio aos pequenos trabalhadores rurais da região conhecida como Taquaral. O pai e o avô tiveram áreas de terra na histórica localidade que já teve seus tempos áureos.
O artesão da Viola de Cocho tem saudade do Taquaral de antigamente.
Ele volta ao passado e revela que em 1948 o fazendeiro José Esteves de Figueiredo, pai do cidadão Arnaldo Esteves de Figueiredo Sobrinho, morador da Rua Treze de Junho, em Cáceres, cumpriu a promessa que havia feito. Se fosse eleito prefeito, construiria uma sala de aula para atender a referida comunidade onde ele tinha adquirido terras.
Cumprida a promessa, a escola atendeu por décadas os filhos da comunidade. O primeiro professor foi Luiz Apolinário Dias de Carvalho, lamentavelmente passado determinado tempo, a única sala de aula existente na localidade, fechou às portas por falta de professor e de engajamento do poder público com a causa.
Seu Lourenço viu-se obrigado a mudar-se para Cáceres pois queria que os filhos aprendessem a ler e a escrever, a mudança ocorreu no ano de 1978.
![]() Lourenço rodeado pelos filhos: da esquerda para direita: José, Conceição, Catarina, Eva, Gonçalina, Francisco, Ana e Adão. O filho caçula Luciano está na foto abaixo – Fotos: álbum de família
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Até hoje ele ainda se emociona e lembra como foi difícil tomar essa decisão e ter que deixar para trás uma parte de sua vida…a bica d’água, os engenhos, os monjolos, da mini usina de cana que fabricava açúcar e aguardente, e os velhos amigos e alguns parentes.
A mudança foi oportuna e teria que acontecer, essa a reflexão que ele faz hoje. Os filhos estudaram, se formaram, constituíram famílias e estão vencendo as etapas da existência.
Mas nem por isso, ele, Lourenço, jamais irá esquecer da localidade onde nasceu. Saudade das festividades de Nossa Senhora do Carmo, a padroeira da localidade. Uma semana antes do dia 16 a data oficial, tinha início a novena com a subida do mastro, iniciava-se assim uma corrente religiosa que movimentava toda a comunidade constituída aproximadamente de 200 pessoas.
Festança tradicional, animação e alegria. Período propício para os cururueiros se apresentarem. Os tocadores do ganzá e da viola entravam em ação, entre eles, o rapaz Loureço da Guia que já demonstrava afinação com o instrumento musical e a sua peculiar entoação na saudação à bandeira do santo, mastro, altar.
![]() Aos 83 anos, Seo Lourenço ainda com energia para o trabalho: nessa foto está construindo uma canoa no pátio da Sicmatur – Foto: Wilson Kishi
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Inspiração dada por Deus
Ele começou a ter sua inclinação com a arte ainda rapaz, entre 17 e 18 anos, quando em companhia do amigo Mário fizeram o primeiro instrumento símbolo do homem pantaneiro.
A madeira era a Ximbuva e as cordas do instrumento feitas de tripa de macaco. Outras vezes do ouriço, quati…
Passaram-se os anos e ele foi só aperfeiçoando na arte. “Aprendi com a minha própria curiosidade e inspiração dada por Deus”
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A madeira preferida é a Ximbuva mas o Sarã é tida como a rainha da madeira para se fazer uma viola de excelente qualidade. Cita ainda que o Cedro, Mangueira, Carrapicho, Abobreira, Mandiocussú e Imbirussú também servem para se fazer o instrumento.
A retirada da madeira deve ser efetuada na lua minguante, nunca na nova, pois é “forte e costuma brocar a madeira”.
No passado conta que se utilizava tripa de macaco, ouriço, bugio ou irara para fazer as cinco cordas da viola, e que a cola para fixar o tampo do instrumento (antes feito de raiz de figueira branca e hoje de pinho cuiabano) era obtida da poca do pintado e da planta sambaré.
As violas feitas por ele já foram comercializadas em Cáceres, região, Cuiabá, Brasília, Rio de Janeiro e já ganharam o mundo levadas por turistas cubanos, holandeses, americanos, japoneses e chineses.
Dos velhos e bons tempos, Seu Lourenço fala com entusiasmo dos cururueiros do Pita Canuto; “dava gosto de ver eles cantar”. Segundo ele, tocar viola, ganzá e cantar, são dons do verdadeiro cururueiro.
Recorda do sanfoneiro José Cuiabano – o maior sanfoneiro da morraria. Executava os hinos de santo com verdadeira maestria.
![]() Grupo de Cururueiro: da esquerda para a direita: Belmiro de França, Zidório de França, Lourenço da Guia e José de Souza
Foto: álbum de família |
Tudo agora é saudade!
A exemplo das cheias do Rio Paraguai…quando a água chegava passar por cima da Ponte Branca.
A fartura de peixes que era fisgado no Sangradouro onde está fixado o palco de eventos. O local era inundado e não secava.
Das cargas de banana que transportava do Taquaral em carro de boi para atender Cáceres.
O homem que nasceu no berço cultural do cururu e do siriri, voltou a se animar num determinado período quando o padre Giovane, da Diocese de São Luiz de Cáceres, começou a tentar se organizar um grupo de pessoas para devolver vida à Comunidade do Taquaral. Ele pretendia resgatar a tradicionalidade que estava esquecida… Porém, não teve solução de continuidade, o religioso deixou Cáceres após ter cumprido seu tempo na diocese.
Outra que ensaiou resgatar as tradições culturais cacerenses foi a saudosa professora Dulce Regina Curvo, quando esteve à frente da Secretaria de Turismo. Ela chamou Seu Lourenço para algumas inserções nos calendários de eventos, inclusive, em algumas oficinas em madeira, a exemplo da confecção da viola, do remo pantaneiro, a colher de pau, gamela, etc.
Em 28 de setembro de 2018, o Colégio Salesiano (antigo ISM) prestou uma homenagem ao seo Lourenço. Na foto acima, aluna da escola que escolheu a sua personalidade a ser homenageada e ao seu lado, Marcos Nascimento, então secretário de Esporte e Cultura, seo Lourenço, a então vice-prefeita, hoje prefeita, Eliene Liberato e o padre Sandro. – Foto: Wilson Kishi
Na foto abaixo, o painel do Colégio Salesiano, em comemoração aos 240 anos de Cáceres |
Quem o substituirá na confecção da Viola de Cocho?
Todos instrumentos que o artesão homenageado sabe executar como poucos. Sua preocupação é pelo fato de não ter um seu substituto na arte de fazer a viola e executá-la.
Para assim, dar continuidade a essa tradição única nestes lados pantaneiros que jamais poderá desaparecer. Seu Lourenço está muito preocupado. Sonha ainda poder ensinar a sua arte para esta geração que aí está, assim continuar a identidade cultural de um povo que tem muito bela e rica história.
Ele gostaria que outras pessoas, autoridades e instituições viessem somar com a professora Zelma, uma entusiasta que de longas datas atua na preservação cultural de Cáceres praticamente sozinha.
A sua arte ele vai deixar gravada nos trabalhos até então desenvolvidos, a exemplo da canoa que ajudou a ser construída com o outro octogenário e amigo Joaquim Santana, e que ficará exposta na Secretaria Municipal de Turismo. Os dois amigos foram convidados pela referida secretaria para aproveitar um tronco de Ximbuva que havia caído pelo vento. Eles toparam a empreitada e concluíram o trabalho que agora está à mostra no local que diariamente é visitado. Desse modo parte da história está ali exposta e o trabalho dos dois artesões sendo contemplados.
Seu Lourenço também está com a empreita de fabricar algumas miniaturas de monjolo, para o engenheiro Adilson dos Reis presentear autoridades estaduais e outras de Brasília, que na semana de aniversário de Cáceres, aqui estarão participando do evento intitulado Diálogos Hidroviáveis, quando o rio e a navegação estarão sendo debatidos.
![]() O bisneto de seo Lourenço, Lorenzo Silva Oliveira, de dois aninhos completados em 16 de setembro, já tomou gosto da viola. Quem sabe está no caçula da família a continuidade da arte de fazer a viola de Cocho – Foto: Wilson Kishi
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O Vapor Etrúria em versos
O artesão Lourenço da Guia, como forma de homenagear o Vapor Etrúria, que por longos e marcantes anos foi o único meio de ligação de Cáceres à Corumbá e as demais localidades fora do estado, na navegação pelo Rio Paraguai, compôs alguns versos:
“José Dulce foi na Itália,
O Etrúria ele comprou.
Travessou muitas marés
E em Cáceres chegou!
Tinha outras embarcações
Mas a Etrúria era principal
Era meio de transporte
De São Luiz para Corumbá.
O Etrúria foi vendido
A história se acabou,
Aqui no Porto do Cais
Nunca mais ele voltou.
Até hoje eu me lembro
dos anos que já passou,
Só me trago na lembrança,
A memória que dele (Etrúria) ficou!”
Taquaral…lembranças saudosas
“No lugar onde nasci,
Tenho história pra contar
Tinha água encanada
Era gostoso de banhar.
Hoje não existe mais
Nem monjolo pra socar.
Tudo isso se acabou
Na história do Taquaral.
No mundo em que vivemos,
Nós devemos preservar
Este solo abençoado
Arvore pode plantar
Para proteger a Terra
E a beleza do lugar.
Mais de um século se passaram,
Tem um pé de tamarindo,
Onde nós vinha brincar
No tempo em que era menino.
Hoje vejo a igrejinha
Comemorar 100 anos,
Onde mora a Padroeira
Nossa Senhora do Carmo”.
Versos estes que estão gravados em sua mente, uma memória aguçada e viva com as coisas da Terra que tanto ama. Seus filhos não seguiram a sua vocação no trabalho com a madeira, com isso, a Viola de Cocho não tem um seguidor ou seguidora na família.
Mestre Lourenço, simples e sábio através dos seus oitenta anos de luta, sempre na procura em empunhar com galhardia e orgulho as bandeiras da cultura e tradição dos cacerenses de tchapa e cruz. Com ele a viola ressoa afinada, livre e feliz.
ALGUNS REGISTROS DE FAMÍLIA DE LOURENÇO DA GUIA FERREIRA MENDES |
![]() Lourenço ao lado de sua irmã
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![]() Dona Lídia (esposa de Lourenço) rodeada pelos netos e bisnetos
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![]() Cartão de Convite da Festa de 80 anos de Lourenço da Viola de Cocho, em 11 de agosto de 2018
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2 respostas
Meu GRANDE AMIGO, SEU LOURENÇO, estivemos juntos em vários momentos e locais, realizando mostras da nossa Cultura, fizemos várias viagens juntos levando o nome de Cáceres-MT, através dos nossos Trabalhos Culturais, ele com suas violas de cocho e eu com as minhas pinturas em telas, quando fui Coordenador de Cultura convidei Sr. Lourenço para confeccionar uma canoa de um pau só, aproveitando uma madeira de uma ximbuva que caiu naturalmente nos fundos da SEMATUR, Seu Lourenço convidou o Sr. Joaquim Santana e juntos confeccionaram a canoa ali mesmo nos fundos da SEMATUR, hoje e para sempre esse trabalho, “a Canoa de um pau só”, fica esposto na Secretaria de Turismo e Cultura, OBRIGADO Seu Lourenço por tudo que me ensinou e fez por Cáceres-MT e o legado ETERNIZADO deixado para a nossa CULTURA CACERENSE, Vai em PAZ…
Grande personagem da história de Cáceres. Tinha profundo apreço pelo primo Natalino Ferreira Mendes com quem trocou experiências sobre a cultura popular, contribuindo na elaboraçao da história do cururu, publicada no livro “Fragmentos da história cultural de Cáceres” (2020). Que permaneça vivo na nossa memória!!